António, só António, tinha seis anos quando uma pedopsiquiatra lhe disse que, por gostar de rapazes, ia encontrar pessoas más e apanhar doenças. António, António Serzedelo, levou com choques elétricos enquanto um psiquiatra lhe mostrava imagens de casais homossexuais. "Jorge" teve uma terapeuta a sugerir-lhe que aquele não era o melhor caminho. À segunda, teve medo e mentiu. Os meandros das supostas terapias de conversão e as tentativas de as criminalizar.
António, 22 anos (o apelido permanecerá oculto nestas linhas porque prefere poupar a família à exposição), teve "aqueles comportamentos que as pessoas consideram mais femininos" desde que se lembra de ser gente. "Brincar com bonecas, por exemplo." Mas foi um momento familiar à volta da televisão, tinha ele seis anos, que lhe traçou o caminho. "A dada altura, vi um casal gay e disse que gostava de ser aquilo." Jura que ainda tem presente a sensação de choque que essas palavras provocaram nos pais. Primeiro, nada disseram. Mais tarde, vaticinaram: "Vais falar com esta senhora." A senhora, percebeu anos mais tarde, era uma pedopsiquiatra do setor privado, um nome que corria em certos círculos sociais. "E eu fui, claro. Era uma criança. Não foi uma opção." A experiência não foi imediatamente aterradora. A princípio, houve empatia, palavras meigas, uma aparente tentativa de criar uma zona de conforto. Acabou a partilhar que gostava de rapazes. A confissão foi uma espécie de interruptor. O espaço que lhe chegou a saber a aconchego e liberdade fez-se afinal de uma hostilidade tamanha. "A partir do momento em que conseguiu que eu me abrisse, começou a retratar o que partilhei como algo mau, doentio, algo que eu não devia repetir. Fazia críticas fortíssimas, inclusivamente ao facto de passarem imagens daquelas [de casais homossexuais] nas televisões e aos efeitos que isso podia ter nas crianças." O objetivo, perceberia mais tarde, não era a culpa, nem a reflexão, muito menos o amparo. Era somente o medo. "Dizia que se fosse por esse caminho ia encontrar pessoas que me iam fazer muito mal, que ia apanhar doenças, falou-me da SIDA, de abusos, coisas horríveis."
O massacre durou dois anos. "O objetivo das sessões era claro: sair de lá a dizer que já não gostava de rapazes." Com oito anos, António fez-lhe a vontade. "Se eu acreditei realmente no que estava a dizer? Não. Mas já tinha tanto medo daquela pessoa que achei melhor." Livrou-se assim da "terapia". Entre muitas aspas. E nunca mais falou do assunto. Com ninguém. Depois veio a puberdade, a explosão das hormonas, e tudo ficou mais difícil. A primeira pessoa a quem contou foi a uma amiga próxima, "entre duas horas de lágrimas". Com 15 anos, meteu-se nas "redes sociais de engate gay". Mesmo que teoricamente estas só estejam acessíveis a maiores de 18. Acha hoje que procurou ali uma bengala para a solidão. Uma certa forma de validação também. O arrojo saiu-lhe caro. "Se soubesse a quantidade de pessoas para quem o facto de eu ter 15 anos nunca foi um problema ia ficar chocada", diz-nos, a angústia a enrolar-se a cada a palavra. Acabou vítima de abusos. De chantagens também. Andou nisto dois anos. Até a história se tornar caso de polícia e ter de envolver os pais. Hoje, à distância de meia dúzia de anos, discorre sobre os motivos que o levaram a andar mergulhado naquela zona sombria, e logo durante tanto tempo. "Acho que de alguma forma foi uma atitude de rebeldia, de provar a mim mesmo que era capaz de aguentar. E a dada altura acreditei mesmo que merecia tudo aquilo."